terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Capítulo VII - Efigénia

O olhar de Laura tentou seguir o rasto da figura desaparecida, mas estranhamente quanto mais para o interior do jardim olhava, mais claridade naquela noite escura encontrava. “Mas que raio…”, pensou, e deu por si a ouvir vários sons vindos dessa parte do jardim. Foi então que se lembrou. “Estúpida”, auto-repreendeu-se em pensamento. Olhou para o relógio da mesa-de-cabeceira. Estava atrasadíssima. O seu diário tornara-se o seu “porto seguro” desde a morte dos pais e quando nele escrevia o mundo fora dos seus pensamentos passava por ela sem ela se aperceber. Levantou-se e procurou o armário. Cinco anos num colégio interno fizeram-na esquecer um pouco o quarto que já fora seu. Encontrado o armário, abriu-o e fez a si mesma uma das perguntas mais utilizadas na História do sexo feminino: “Que irei eu vestir…?”
***
No grande relógio de ouro e marfim do Salão Nobre bateram oito badaladas, contudo o seu som era abafado pelo som de cordas de violino que até ali lhe chegavam vindas da ala nordeste do jardim da mansão. Ouviam-se risos de homens roucos devido aos charutos que fumavam. Ouviam-se sussurros abafados de coscuvilhices contadas. Ouviam-se suspiros soltos de raparigas enamoradas. Mas naquela noite o som mais ouvido era o som que trouxera grande parte do jet-set nacional aos jardins da família Alves Antunes. Era o som do mais sublime dos néctares a escorrer pela garrafa e indo repousar no mais fino cálice de cristal. Ali, num dos zénites da arquitectura paisagista do séc. XVIII, e com alguns dias de atraso devido à chuva, decorria a festa de apresentação do Porto D’Or o mais recente vinho do porto da Casa de Vinhos Alves Antunes.
A Casa de Vinhos Alves Antunes havia sido fundada por João dos Santos Dinis Teixeira e Lencastre Ferreira de Borges Alves Antunes, Visconde de Vilar de Bosque e conselheiro Real de D. Maria II, em 1840. Tendo como sede a Quinta do Rio das Camélias em Vilar de Bosque, esta Casa modesta veio a tornar-se famosa através de Salazar que elegera os Portos da Alves Antunes como os seus predilectos. Desde então, tornou-se num dos maiores exportadores de Vinho do Porto e hoje em dia tinha como administradora uma das figuras mais importantes da indústria vinícola portuguesa: D. Efigénia de Alves Antunes, matriarca da família.
Efigénia, filha única e descendente de todo o património Alves Antunes havia sido uma criança doce e alegre. Na quinta da família, onde crescera, era o deleite e encanto de todos. Desde os pais, passando pelos amigos da família e até pelos criados, Efigénia era a personificação da criança perfeita. Educada, bonita e graciosa, tinha sempre uma palavra amiga a quem quer fosse. Sempre que ia com os pais a Vilar de Bosque fazia questão de dar esmola e carinho a qualquer pedinte ou enfermo que visse. No entanto, caía sobre os seus ombros a enorme responsabilidade de dar continuidade à linhagem dos Alves Antunes. Encontrar um marido para Efigénia passara a ser o objectivo número um dos seus pais.
É desta maneira, que com os seus ternos dezasseis anos vê-se a casar com Avelino de Sousa e Castro, mais tarde General Avelino de Sousa e Castro, um homem que não conhecia e muito menos amava. Apesar da desconfortável situação a que os seus pais a colocaram, Efigénia viveu um casamento pacato com Avelino, que apesar de desprovido de amor não fora contudo desprovido de filhos. Tivera quatro: João, Ermelinda, Lourenço e Isaura. Eram a sua perdição. Canalizara todo o amor que tinha para dar aos seus quatro petizes. Cuidar deles tornou-se a sua prioridade. Deixou os assuntos relativos à Casa de Vinhos entregues ao seu marido e aos seus pais e concentrou-se absolutamente na maternidade. Amava os seus filhos por igual, mas tinha uma especial queda por João. Projectava nele todos os sonhos que nunca cumprira e fazia dele um pequeno príncipe. O acidente que o pequeno petiz sofrera com uma gaivota no Tamariz, apenas veio reforçar o grande amor que tinha por ele. Vivia feliz.
No entanto, a par da maioria dos portugueses, no dia 25 de Abril de 1974, a sua vida sofreu uma reviravolta de 180º. Com o rebentar da Revolução dos Cravos e devido à conhecida relação dos Alves Antunes com grandes nomes do Estado Novo, Efigénia e Avelino viram-se forçados a fugirem para o Brasil com os filhos, deixando assim em Portugal todo o património dos Alves Antunes ao encargo dos pais de Efigénia que se recusaram a deixar entregue aos “cães” toda a sua secular herança. Esta persistência vir-se-ia a mostrar fatal a 26 de Dezembro de 1974, data em que Efigénia recebe no Brasil a notícia de que os seus pais haviam sido mortos aquando um assalto à Quinta das Camélias. Efigénia ficou devastada. Não conseguia acreditar. Os seus pais haviam sido um grande pilar na sua vida e agora morriam assim “nas mãos de uma escumalha comunista, que sedenta de vingança, ceifa vidas como quem ceifa trigo”. Caiu numa profunda depressão. Os seus filhos, que significavam tanto para si, simplesmente deixaram de existir aos olhos dela. O seu marido – que apesar não sendo o homem que idealizara para si, havia-se revelado um companheiro fiel e amigo – não conseguia ajudá-la a sair daquele estado. Estava só. As notícias que chegavam de Portugal não eram de todo um auxílio à sua recuperação. Bem pelo contrário. A Casa de Vinhos Alves Antunes havia sido nacionalizada e todos os bens pertencentes à sua família pertenciam agora ao Estado. Era o fim. Efigénia estava nas ruas da amargura: os pais mortos, o património Alves Antunes entregue a pessoas que se achavam no direito de possuir o que sempre invejaram, exilada num país que não conhecia e rodeada de uma família que já nada lhe dizia, pensou que nada mais lhe poderia acontecer. Mas aconteceu. Passados dois anos de exílio no Brasil e sem dar sinais de que tal poderia acontecer, Avelino enforca-se à entrada de casa. Até hoje ninguém conhece os reais contornos de tal acontecimento nem o que aconteceu depois.
Os quatro anos seguintes da vida de Efigénia tornaram-se um total mistério. Não se sabe onde esteve, o que fez ou como conseguiu sobreviver. Nenhum dos filhos ousa sequer comentar com alguém o que se passou naquela época. O que se sabe, é que em 1980 regressa a Portugal e após uma longa batalha jurídica consegue em 1982 recuperar tudo o que havia sido seu. Mas a Efigénia que voltou a Portugal não era a Efigénia solidária e ternurenta da sua infância, nem era a Efigénia feliz dos seus tempos de maternidade, nem tão-pouco a Efigénia angustiada da Revolução. Não. A Efigénia que tinha voltado a Portugal era outra mulher. A alegria e a doçura haviam dado lugar à frieza e à seriedade. O amor pelos filhos havia sido substituído pelo rigor e disciplina. A sua ingenuidade deixara simplesmente de existir. Todos ficaram a conhecer uma mulher inteligente, forte e com grande visão empreendedora. Pegou nos resquícios em que o estado deixara a Casa de Vinhos e não só restaurou a glória do antigamente como também expandiu a empresa para novos horizontes, tais como a exportação massiva dos Portos Alves Antunes para o estrangeiro e a compra de pequenas companhias vinícolas que só veio a fortalecer o império Alves Antunes.
Entretanto, os seus filhos seguiram a sua vida. João, seguiu a carreira política e tornou-se presidente da Câmara Municipal de Braga. Ermelinda e Lourenço, assumiram cargos importantes na Casa de Vinhos. Ermelinda como Directora Administrativa da Sede de Lisboa e Lourenço como Vice-Presidente da empresa. O último elemento da família, Isaura, casara-se com um espanhol de sangue azul que faleceu dois meses após o matrimónio. “Afogada” em dinheiro, passou a ter uma vida de luxo e extravagância e é hoje em dia uma das presenças habituais das revistas “do social”. Efigénia ficou satisfeita com o rumo que os filhos tomaram, apesar de nunca o demonstrar. As únicas excepções eram Isaura, devido á superficialidade da sua vida, e em parte João. Via com bons olhos a carreira política do filho. Contudo, não perdoava-o por se ter casado com Luísa. Vinda directamente de um cabeleireiro de Gondomar, Luísa não era de todo a mulher com que queria ver João casado. Pobre, inculta e deslumbrada, Luísa tornou-se a pior inimiga de Efigénia. Odiava-a profundamente e se não fosse por Rosélia e Leonor, nem sequer lhe dirigiria a palavra.
Apesar deste senão, a vida de Efigénia corria muito bem. Mas no entanto a sua “carapaça de ferro” nunca quebrou. Desde os misteriosos acontecimentos da última metade da década de 70, Efigénia – apesar de demonstrar por mais que não seja um certo apreço pelos netos – pareceu deixar de ter sentimentos. Há cinco anos atrás aquando o trágico assassinato de Lourenço e da sua nora, não derramou uma única lágrima. No funeral não se notou um único laivo de tristeza nos seus olhos. Apenas aquela seriedade crua e dura que a caracteriza.
Enfim, agora ali estava ela com quase setenta anos e apesar de estar numa festa maravilhosa, a apresentar o que dava sinais de ser mais um trunfo para a Casa de Vinhos Alves Antunes e rodeada de gente alegre e divertida, Efigénia comportava-se da mesma forma como se comportava em família. Com austeridade.

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