quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Capítulo IV - Anúncio de uma Chegada

Os quatro elementos que compunham a mesa de pequeno-almoço dos Alves Antunes encontravam-se em silêncio sepulcral. A tempestade havia finalmente amainado, contudo ninguém dera conta. Estavam todos submersos nos seus pensamentos. Era curioso verificar como os hábitos alimentares e o comportamento de cada um naquela manhã eram uma espécie de espelho do que lhes ia na alma.
Leonor, que encontrava-se à esquerda do pai, estando este à cabeceira da mesa, qual chefe de família cristã, trabalhadora e assente na moral e nos bons costumes, barrava as torradas ainda fumegantes com a compota de morango que a execrável tia Ermelinda trazia da sua quinta do Ribatejo. Detestava a Tia Ermelinda. Sempre com aqueles tiques de dondoca fútil e oca, Mal esse que a família da parte do pai infelizmente padecia, com aquele voz que tinha a mania de estender as últimas sílabas das palavras, em que o seu nome soava na boca dela a qualquer coisa como “Leonoooooooooorrr”, e, sendo o que a irritava mais, trazia sempre incontáveis pulseiras de ouro cheias de berloques que anunciavam sempre a sua presença mesmo antes de sequer ser vista. Costumava comentar com as suas amigas que da mesma maneira que os gatos tinham guizos e as vacas tinham badalos, a sua Tia tinha pulseiras. Mas se havia coisa que não pensava naquela manhã era de todo na Tia Ermelinda. Bem pelo contrário. Barrou a torrada toda e discretamente lambeu os restos de compota que ficaram na faca. Lambeu bem lentamente. Estava deliciada a lembrar-se dos beijos quentes e húmidos que trocara poucas horas antes. E que provavelmente iria voltar a trocar.
Do outro lado da mesa, bem defronte a Leonor e à direita do marido estava sentada Madame Antunes. Lulu, para as amigas, brincava com as três folhas de alface e os seis pinhões que compunham o seu prato do pequeno-almoço. Acompanhado de um copo Huo Qing, um chá extremamente chique da província chinesa de Anhui, este seu pequeno-almoço obedecia ao plano alimentar feito pelo Dr. Póvoas para que Lulu perdesse os três quilos que a atormentavam há já alguns meses. Contudo, naquela manhã estava desinteressada em tão desinteressante “manjar” matutino. Uma grave preocupação ocupava os seus pensamentos. “ Será que o meu creme anti-rugas do Dr. Caspari está a fazer resultado? Saindo daqui vou directa ao espelho do quarto! Bem, a Tétinha disse-me que fazia maravilhas, mas essa aí era capaz de me dar arsénico e dizer-me que era um cocktail requintadíssimo. Puta. Ai Jesus! Perdoai-me a blasfémia Nosso Senhor!” Perdia a fome só de pensar em tamanha consternação.
Na cabeceira da mesa, João Antunes, o Rei, como os empregados da casa o chamavam, cortava com uma certa agressividade as fatias crocantes de bacon que eram a sua perdição matinal. O Rei, esperava ter a mesma agressividade quando pegasse na sua espingarda e matasse tudo quanto era passarada que voasse à sua frente na tarde de caça que programara com os seus amigos (engenheiros, ministros, deputados, doutores e até algumas figuras da Casa Real Espanhola e Monegasca). João adorava caçar. Particularmente aves. Como gostava de ver a bala embater no corpo penugento dos pássaros, vê-los cair por terra, pegá-los e sentir o odor daquele cadáver animal. Era uma obsessão doentia. Tudo começara quando com os seus singelos 4 anos, João fora à praia com os pais (Tamariz, óbvio…) e ao sair do carro (Mercedez, mais que óbvio…) uma gaivota, que decerto tinha o GPS avariado, foi contra a cara da pobre criança. Lavado em sangue, os papás Antunes levaram João para o hospital (será mesmo necessário escrever “particular”?) onde teve que levar 17 pontos na bochecha esquerda. Desde então, tem feito da sua vida uma vendeta contra o mundo ornitológico. Enquanto João viver, nenhuma ave estará a salvo.
Finalmente, o último elemento do clã Antunes, nada comia. Sentada do lado esquerdo de Tétinha, Rosélia apenas tinha à sua frente um simples copo de água (benta, para purificar…). Tentava esquecer o pequeno “acidente” que tivera nos seus aposentos sanitários. “Respira Rosélia Antunes; volta…”, dizia a si própria, numa tentativa frustrada de se acalmar. Visto não resultar, tentou rezar. Rezou, rezou, rezou, rezou e ainda rezou mais um pouco, mas nada. Aquele “momento” não lhe saía da cabeça. Quando chegara à mesa do pequeno-almoço disfarçara, mas dentro si chorava lágrimas de sangue. Estava revoltada. Tinha tido uma experiência que por um lado não queria ter, mas por outro desejava-a intensamente. Não conseguia entender. Enervou-se pelos seus pais não perceberem o estado dela. Enervou-se ainda mais ao pensar na possibilidade dos seus pais perceberem. A vergonha… a desonra…
Era assim o retrato psicológico e alimentar da família Antunes. A calma, teatralizada nalguns casos, reinava. Contudo tudo iria mudar com o anúncio que Lulu fez:
- Ah! Que disparate! Como eu tenho a cabeça… Meninas, a vossa prima Laura sai hoje do Colégio. Deve estar aí pela hora do almoço.
O mundo que girava em torno de Rosélia e Laura parou. Uma torrada caiu das mãos de uma e um copo fora entornado pela outra. Uma apertou a faca com força, a outra crispou as mãos no tampo da mesa. Os beijos trocados e os orgasmos sentidos desapareceram da mente das irmãs. Aliás, tudo desaparecera. Naquele momento a única coisa que existia eram elas as duas. Os seus olhos encontraram-se e daí não mais saíram. A corrente visual era tensa e feroz. Cada uma exalava fúria e uma raiva nunca antes vista. Era algo de animalesco. Entre elas surgira um ódio profundo e sofrido que tinha como explicação apenas uma: a Laura ia chegar. Os pais, que não haviam dado conta da súbita transformação de humores das filhas e que falavam sobre a estadia de Laura na mansão, foram interrompidos por Rosélia que pedia se poderia ir para o quarto pois sentia-se maldisposta. Dada a aprovação, logo se seguiu Leonor dando a desculpa que iria acompanhar a irmã. Levantaram-se e saíram da sala. Viraram à direita e atravessaram o Salão de Bilhar. Nada disseram e nunca por um momento se olharam. No fim do Salão, viraram à esquerda e entrando no hall dirigiram-se à grande escadaria, que dava acesso ao piso dos quartos, e subiram-na dando passadas firmes e sonoras. As escadas desembocavam a meio de um grande corredor. O quarto de Leonor era do lado esquerdo. O quarto de Rosélia era do lado direito. Vendo-se no cimo das escadas, pararam, viraram-se uma para a outra olhando-se intensamente durante alguns segundos. Até que Leonor dispara:
- Ouve-me e ouve-me com atenção pois eu só vou dizer isto uma única vez: não te atravesses no meu caminho.
E virando costas à irmã, caminhou em direcção ao seu quarto.
- Isso é uma ameaça? – Perguntou friamente Rosélia mantendo-se fixa como uma estátua.
Sem parar de caminhar e sem se virar para a irmã, Leonor grita do fundo do corredor:
-É.

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