sábado, 12 de dezembro de 2009

Capítulo V - Segredos

Deslizou as pernas nuas pelo pátio do Colégio, ao lado da acanhada e retraída irmã, absorvendo aqueles olhares masculinos a ela lançados como barras de energia. As meias puxadas até ao joelho não escondiam qualquer glória: o resplandecer da sua pele de pêssego ofuscava um baço torrado pelo sol pelos olhos dos outros alunos com uma clara evidência de deslumbre. Leonor podia não ter vergonhas, mas orgulhava-se dos dons que herdara do lado feminino da família.
Rosélia retraiu-se olhando para a irmã fugazmente levando uma das mãos ao seu pescoço e agarrando no seu crucifixo. Com a outra, apertava os livros contra o peito. Olhava de soslaio para a criatura bamboleante que a acompanhava até atingirem o pátio principal do Colégio. Algumas miúdas correram na sua direcção – na de Leonor, não na de Rosélia. Rodearam-na com conversetas de adolescente, algumas risadas animadas, e depois calaram-se por entre sussurros, altura em que Leonor gira sobre os calcanhares e enfrenta a irmã, colocando-lhe uma mão sobre o seu ombro, embora de nobre nada tivesse aquele gesto brusco.
– Porque é que não me deixas da mão, agora, e não te piras? Vai lá ter com as tuas amigas e não me chateies.
Rosélia balbuciou um par de palavras que não chegaram a ser terminadas, e franziu a testa num olhar de arrogância lançado à irmã mais velha, que a olhava de cima para baixo, altiva. Afastou-se lentamente, arrastando os pezinhos pequenos até uma criaturinha acanhada, ruiva, de óculos arredondados e sardas a pintarem-lhe o nariz, sentada sobre um dos bancos metalizados sobre as telhas cor de tijolo decorativas do pátio lateral. Leonor sorriu, e retomou ao seu círculo social.
– Então, como foi ontem?
A voz surgia de uma figura alta, rejubilante, de uma criatura excitada, as palavras saíam-lhe quase cantadas, e se pudesse adivinhar, Leonor visualizava-a já, num futuro muito próximo, de joelhos à sua frente, impedindo-lhe a passagem, a salivar-se perante a necessidade de informação. Parecia que lhe via o sol reflectido nos olhos de tanta ansiedade, e se essa luz interior e misteriosa se propagasse por toda ela poderia quase visualizar contornos brilhantes a pintarem-lhes os fios de cabelos loiros lisos, até aos ombros, e a descer-lhe por toda a pele torrada pelas praias da República Dominicana.
Por fim, encolheu os ombros e resmungou: – O mesmo de sempre.
Parecia que alguém tinha arrancado toda a luz dos olhos famintos da amiga. – O mesmo de sempre? Mas tu nunca me contas nada! Não confias em mim, é isso? Vá, diz-me lá como é que foi! Ele…? E tu…? Dormiste alguma coisa, sequer?
– Cala-te, Samanta, por amor de Deus!
Atravessaram todo o pátio, arrastando os pés pelo pavimento languidamente, mesmo antes da campainha tocar e anunciar a entrada definitiva de todos os estudantes na primeira aula da manhã. Leonor fez-se acompanhar pela faminta Samanta e as restantes duas que riam em gargalhadas ocultas pelas suas mãos delicadas, marmóreas, e unhas esguias à francesa, anéis de diamantes e pulseiras tilintantes. Pararam defronte da porta de acesso ao corredor interior, momento o qual Leonor aproveitou para olhar em volta. Momento o qual Samanta retomara o seu lamento.
– Não confias em mim, não é? Sabes que me podes contar qualquer coisa, sou a tua melhor amiga!
Leonor bufou antes de olhar uma última vez e reparar num último grupo de raparigas que caminhava lentamente na direcção da porta, lançando um daqueles olhares de código em direcção a Samanta, que imediatamente o entendeu. O benefício de uma amizade duradoira, desde que tinham, pelo menos, seis anos, era que ambas teriam aprendido a ler as suas expressões de tal forma que as suas conversas poderiam reduzir-se apenas a um par de grunhidos e uma longa afronta de expressões e movimentos corporais, que no fundo, tudo se concluía como uma longa conversa telepática. Naquele momento, teria sido precisamente o que se passara. E Samanta, compreendendo perfeitamente o que Leonor lhe gesticulara com as expressões faciais mudas, encostou-se a uma parede de braços cruzados à sua frente, sorrindo de esgueira, enquanto as rapariguinhas passavam por elas, até que apenas as duas sobraram no pátio.
– Mas o que é que tu queres que eu te diga, que fui para a cama com ele e que estivemos a noite toda naquilo?!
Samanta abriu a boca, provavelmente numa revolta pessoal, em mais lamentos famintos de informação e a pedir explicações, porque é que a amiga lhe estava a falar assim. Mas antes que o fizesse, antes que fizesse tudo isso e sabe Deus que mais, os seus olhos vidraram-se, atónita, apenas por um par de segundos. Depois, franziu uma sobrancelha e apontou para trás das costas de Leonor. De seguida, a sua derradeira reacção, foi rir, mas apenas em gargalhadas pequeninas, enquanto olhava para a situação com que se deparava.
Rosélia estacara atrás da irmã sem que esta se desse conta e escutara as suas palavras blasfémicas. Agarrando os seus livros contra o peito, a outra mão ainda escondida sob o decote tocando levemente com os dedos sobre a cruz de ouro, ao lado da criaturinha ruiva e sardenta, ela não se moveu, mas não se mostrou espantada. Não, Rosélia não se deixou levar pela história escandalosa da irmã – porque, na verdade, já não se admirava. Sabia que irmã tinha demasiados namorados, e constantemente ouvia sons esquisitos vindos do quarto dela, que ela, pé ante pé, caminhava pelo corredor e se encostava às paredes a tentar ouvir, até que descobriu que encostando o copo na sua parede e calcando o ouvido contra o vidro era mais eficaz. Nunca compreendera que sons eram aqueles. Estalidos de língua, risos, vozes abafadas por algo, sons fugazes de abafares, respirações… E, depois, na manhã seguinte, sempre via aquele escadote escondido, todos os dias entortado, certa vez, até, eles esqueceram-se dele ali mesmo, encostado ao parapeito da janela da irmã. Escadote, esse que, mais tarde, o jardineiro removeu, não fosse a Madame Antunes deparar-se com aquilo e organizar imediatamente uma escandaleira.
Maria Leonor voltou-se para trás, na direcção do olhar de zombaria de Samanta, para se deparar com um novo olhar, o da sua irmã, de lábio franzido, quase a mordê-lo, olhos fixados nela, sobrancelhas carregadas de fúria. Bufou apressadamente, não perdendo tempo em agarrar a irmã pelos ombros e arrastá-la para onde ninguém as ouvisse, de caminho fazendo sinal, com uma mão desdenhosa, às restantes duas que se fossem embora dali e deixassem ambas ter uma conversa devidamente privada.
– O que tu ouviste não é verdade – desculpou-se. – Eu só disse aquilo para calar a Samanta.
– Não sejas mentirosa. Pensas que eu não tinha notado? Os nossos quartos não são assim tão distantes um do outro, eu consigo ouvir-te. E pensas que não vi o escadote à tua janela? Eu sempre soube que eras por esses caminhos…
Leonor afrontou a irmã com um breve ar de choque, que depressa se dissipou, dando lugar à raiva. – Ok, viste o escadote, ouviste coisas. Mas tu és demasiado miudinha para perceber. O que tens de perceber é que o que eu disse não era verdade. E que isto não sai daqui. Ai de ti que vás contar alguma coisa à mamã.
– Outra ameaça? Se chegarmos a um acordo, acho que me posso calar: hoje, quando a Laura chegar, tu ficas no teu lugar e deixas-me a mim fazer o que me compete. Sabes muito bem que é o que eu quero. – E, de soslaio, voltando a cabecinha coroada de fios loiros que resplandeciam àquela luz solar matinal divinal, bufou, imperceptível à irmã: – Aquela alma tanto que precisa de uma salvação.
A mais velha abriu a boca, como que preparada para ripostar uma ríspida resposta, mas deteve-se. De repente, um sorriso malicioso formou-se entre os seus lábios finos e delicados de rosa madura, e os olhos pintados a negro desviaram-se do campo de visão da irmã. Algo lhe atravessa a mente, um plano, talvez. Mas Rosélia não se apercebeu, ainda demasiado embrenhada nos seus pensamentos.
Por fim, afastou o corpo da irmã, num passo lento, e olhou as unhas limadas de fresco da sua mão esquerda, apoiando o cotovelo sobre o braço direito. – Ok, se é assim que queres. Podes ficar com a Laura, faz dela uma das tuas apóstolas e converte-a lá à tua doutrina.
Os olhos de Rosélia fixaram-se novamente na irmã e ela nada disse. Anuiu, de sobrancelhas franzidas de estranheza, e limitou-se a afastar, caminhando na direcção do corredor de salas de aula, até à sala devida. Bateu à porta e entrou sorrateiramente. A sala preenchida de olhos adolescentes concentrou a sua atenção nela. A professora mandou-a entrar, não esquecendo de lhe perguntar a que se devia tamanho atraso. Rosélia sentou-se no seu lugar e sorriu disfarçadamente.
– Coisas de família. Mas está tudo bem.
* * *
A mamã Antunes decidira que as filhas haviam de receber a prima nos mais primorosos vestuários e forçara-as a despirem a farda escolar, substituindo por vestidos vistosos. Rosélia desceu a escadaria nas suas sabrinas pretas de lacinho de seda pela altura do mindinho, enfiada acanhadamente num vestido bege pelos joelhos e uma faixa preta na cintura. Ajeitava-o à medida que calcava os degraus languidamente, esforçando-se por dominá-los como uma verdadeira lady. Mas as sabrinas tornavam-se desconfortáveis, acima de tudo enquanto tentava tirar aquela sensação de desconforto da faixa de tafetá negra que lhe apertava a barriga com força; às tantas, a direita lá lhe deslizou do pé e rolou escadaria abaixo até ao chão marmóreo do hall de entrada.
Saltitou com um só pé os restantes cinco degraus até ao chão, quando finalmente se agachou e agarrou na sabrina perdida. Por fim, sentou-se no último degrau e arregaçou o vestido, enquanto calçava a sabrinazinha com o pé descansado sobre o seu joelho.
Um reboliço de sons de tecidos a roçarem uns nos outros fez-se ouvir nesse momento e imediatamente a mamã Antunes surge coberta num casaco vermelho cor de vinho de gola eriçada até às suas orelhas, carregando os fartos cabelos claros num gancho dourado incrustado com um par de diamantes, numa banana ideal. O som das suas calças tafetá negro, o roçar de ambas as pernas uma na outra, alertou a filha, que imediatamente levantara a cabeça a acudir ao som da mãe a entrar primordialmente no hall de entrada, apenas para ver a filha agachada sobre um pé descalço.
– Filha! Francamente, a tua prima está quase a chegar e tu assim nesses preparos?
Rosélia ergueu-se apressadamente, alongando o cetim do vestidinho branco com as suas mãos delicadas, enquanto a mamã Antunes, erguida como uma Senhora à sua frente, a olhava por entre os cabelos e as dobras dos tecidos, tentando aperceber-se de algo erro que ali não estava. – Desculpe, mamã – disse, por fim, Rosélia. – Estava só a ajeitar a sabrina. A mamã sabe que este par não é muito confortável, mas se insiste que eu use em ocasiões de cerimónia…
– Deixa de ser esquisita, Rosélia – alertou Madame Antunes enquanto examinava o cabelo da filha, retirando o pequenino gancho de prata com uma flor de rubi incrustada, puxando uma mescla do seu cabelo para trás e colocando-o de novo, qual coroa devidamente colocada na cabecinha da sua filha herdeira de trono. – Com a tua idade, já eu andava em saltos altos. Até já corria neles. Vivia neles. Como uma senhora que tem o dever de se apresentar à sociedade – e conquistá-la! – deve sempre habituar-se a usar saltos altos. Acho um ultraje que não os uses, Rosélia, mas como é só para a chegada da tua prima, perdoo-te. Mas começa a praticar que é bom que os uses logo à noite!
Rosélia sorriu abertamente, exibindo os primorosos dentes brancos à mamã Antunes. – Claro, mamã.
Madame Antunes retirou as mãos do cabelo da filha, recuou um passo e sorriu, unindo as palmas das mãos, como quem acaba de conquistar um prémio. – Pronto! Estás linda, filha. E onde é que está a tua irmã? – Um buzinar faz-se ouvir, vindo do exterior. Madame Antunes volta-se para a porta, levando as mãos à cabeça, e retoma para a filha: – Já a tua prima chegou e ela ainda não está aqui! Josefa! Josefa!
O Senhor Antunes surge apressado, escorregando ligeiramente nos seus sapatos engraxados e brilhantes, mas casualmente enfiado nas suas calças caqui e o seu pullover cinzento que entalava uma camisa. Parou defronte de uma prata poisada sobre uma pequena cómoda no hall de entrada, olhando para os seus cabelos puxados para trás com um pente de dente fino, e por fim sorri e alude à mulher que receberá a menina, saindo através das enormes portas de carvalho cravado.
Josefa surge apressada ao lado da Madame, que imediatamente lhe ordena que suba aquela escadaria medonha e ordene à menina Leonor que desça rapidamente e sem demoras, que a prima já chegou e ela ainda aqui não está! Depois de uma vénia apressada e confusa, Josefa galga os degraus dois a dois e desaparece no topo da escadaria.
A porta abre-se. Papá Antunes, agora estranhamente reduzido a um mero pagem de uma bela duquesa, carrega as três malas de Laura, que caminha ao lado do homem delicadamente como uma flor desabrochando num campo de girassóis. O seu cabelo negro ondula ao longo do blazer branco que trás pendurado pelas costas do vestidinho azul de seda enquanto caminha em passos de dança suave e plena de sensualidade, deslizando os pés nas sandálias de salto alto brancas de fivela prateada. Agarra as abas do casaquinho com as suas mãos, exibindo os anéis de prata de ouro de herança dos seus pais, agora defuntos, e olha a casa à sua volta com um olhar perdido de menina órfã que é reintegrada em casa alheia. Por fim, deixa cair o olhar sobre Rosélia; sorri, mas não é na prima que se deixa fixar. Antes, desliza os olhos na direcção de Madame Antunes, que já caminha na sua direcção de braços abertos e chamando o seu nome. É quando a Madame Antunes larga a prima Laura que esta se vai fixar em Rosélia, que a olha deleitada os gestos majestosos da prima.
– Como cresceste, prima! – E, com isto, abraça-a. – E onde está a minha outra prima? Ainda me lembro de ter duas!
– Aqui mesmo.
A voz de Leonor faz todos os inquilinos da casa voltarem os olhos na sua direcção, e vendo-a no seu vestidinho de alças, que a mamã Antunes lhe comprara num dos seus verões em Agualva, todo ele amarelo, como um canário bebé, de estampados florais pretos, coberta no seu casaquinho preto rendado, ninguém se não a Madame Antunes se importou. Principalmente quando a senhora deslizou os olhos pelas pernas desnudadas da filha e se deparou com sandálias douradas atadas à perna.
– Leonor! Eu não te disse que…
– Eu sei, mamã. Mas já nada me servia, só me restava isto. – Uma vez alcançado o chão de mármore do hall, Leonor abraçou a prima. – Há tantos anos, Laura! Como tens passado? Temos tido imensas saudades tuas, aqui!
Madame Antunes interveio no minuto preciso em que Laura abria a boca para responder à prima. – Bom, meninas, a vossa prima deve estar cansadíssima da viagem, porque é que não lhe amos um pouco de privacidade e a deixamos descansar? Laura, temos dois quartos vagos, podes escolher onde podes ficar se…
– A prima Laura pode ficar no quarto ao lado do meu, mamã? – Interpôs Leonor imediatamente, sentindo o olhar fulminante da irmã ao seu lado. – Julgo que temos muito de falar. Quero dizer, não duvido que a Rosélia tenha coisas para contar à prima Laura, também… – O queixo de Rosélia deixou-se descair ligeiramente quando ouviu a afirmação da irmã, mas manteve-se na sua postura. Então, pensou, era aquele o seu jogo… – Mas a mamã sabe como eu e a Laura somos.
Madame Antunes sorri mesmo antes de dar a ordem a Josefa que organize o quarto de hóspedes ao lado do da menina Leonor, e desaparece do salão enquanto o papá Antunes, agora praticamente tornado mordomo Antunes por aquela prima que não via havia cinco anos, sobe as escadarias carregando as suas três malas.
Nesse momento, no momento em que os restantes habitantes da casa lhes voltaram as costas, Leonor voltou-se ligeira e delicadamente para a irmã e sussurrou-lhe ao ouvido, mesmo antes de desaparecer pelas escadas acima, ao lado da prima Laura, conversando animadamente, como se, de facto, nada tivesse acontecido, e deixando Rosélia, para trás, imensa em raiva e dominada por fúria: – Esqueceste-te, maninha, que eu também cá sei dos teus segredos. Agora, é que acho que podemos dizer que temos um acordo.

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