terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Capítulo VII - Efigénia

O olhar de Laura tentou seguir o rasto da figura desaparecida, mas estranhamente quanto mais para o interior do jardim olhava, mais claridade naquela noite escura encontrava. “Mas que raio…”, pensou, e deu por si a ouvir vários sons vindos dessa parte do jardim. Foi então que se lembrou. “Estúpida”, auto-repreendeu-se em pensamento. Olhou para o relógio da mesa-de-cabeceira. Estava atrasadíssima. O seu diário tornara-se o seu “porto seguro” desde a morte dos pais e quando nele escrevia o mundo fora dos seus pensamentos passava por ela sem ela se aperceber. Levantou-se e procurou o armário. Cinco anos num colégio interno fizeram-na esquecer um pouco o quarto que já fora seu. Encontrado o armário, abriu-o e fez a si mesma uma das perguntas mais utilizadas na História do sexo feminino: “Que irei eu vestir…?”
***
No grande relógio de ouro e marfim do Salão Nobre bateram oito badaladas, contudo o seu som era abafado pelo som de cordas de violino que até ali lhe chegavam vindas da ala nordeste do jardim da mansão. Ouviam-se risos de homens roucos devido aos charutos que fumavam. Ouviam-se sussurros abafados de coscuvilhices contadas. Ouviam-se suspiros soltos de raparigas enamoradas. Mas naquela noite o som mais ouvido era o som que trouxera grande parte do jet-set nacional aos jardins da família Alves Antunes. Era o som do mais sublime dos néctares a escorrer pela garrafa e indo repousar no mais fino cálice de cristal. Ali, num dos zénites da arquitectura paisagista do séc. XVIII, e com alguns dias de atraso devido à chuva, decorria a festa de apresentação do Porto D’Or o mais recente vinho do porto da Casa de Vinhos Alves Antunes.
A Casa de Vinhos Alves Antunes havia sido fundada por João dos Santos Dinis Teixeira e Lencastre Ferreira de Borges Alves Antunes, Visconde de Vilar de Bosque e conselheiro Real de D. Maria II, em 1840. Tendo como sede a Quinta do Rio das Camélias em Vilar de Bosque, esta Casa modesta veio a tornar-se famosa através de Salazar que elegera os Portos da Alves Antunes como os seus predilectos. Desde então, tornou-se num dos maiores exportadores de Vinho do Porto e hoje em dia tinha como administradora uma das figuras mais importantes da indústria vinícola portuguesa: D. Efigénia de Alves Antunes, matriarca da família.
Efigénia, filha única e descendente de todo o património Alves Antunes havia sido uma criança doce e alegre. Na quinta da família, onde crescera, era o deleite e encanto de todos. Desde os pais, passando pelos amigos da família e até pelos criados, Efigénia era a personificação da criança perfeita. Educada, bonita e graciosa, tinha sempre uma palavra amiga a quem quer fosse. Sempre que ia com os pais a Vilar de Bosque fazia questão de dar esmola e carinho a qualquer pedinte ou enfermo que visse. No entanto, caía sobre os seus ombros a enorme responsabilidade de dar continuidade à linhagem dos Alves Antunes. Encontrar um marido para Efigénia passara a ser o objectivo número um dos seus pais.
É desta maneira, que com os seus ternos dezasseis anos vê-se a casar com Avelino de Sousa e Castro, mais tarde General Avelino de Sousa e Castro, um homem que não conhecia e muito menos amava. Apesar da desconfortável situação a que os seus pais a colocaram, Efigénia viveu um casamento pacato com Avelino, que apesar de desprovido de amor não fora contudo desprovido de filhos. Tivera quatro: João, Ermelinda, Lourenço e Isaura. Eram a sua perdição. Canalizara todo o amor que tinha para dar aos seus quatro petizes. Cuidar deles tornou-se a sua prioridade. Deixou os assuntos relativos à Casa de Vinhos entregues ao seu marido e aos seus pais e concentrou-se absolutamente na maternidade. Amava os seus filhos por igual, mas tinha uma especial queda por João. Projectava nele todos os sonhos que nunca cumprira e fazia dele um pequeno príncipe. O acidente que o pequeno petiz sofrera com uma gaivota no Tamariz, apenas veio reforçar o grande amor que tinha por ele. Vivia feliz.
No entanto, a par da maioria dos portugueses, no dia 25 de Abril de 1974, a sua vida sofreu uma reviravolta de 180º. Com o rebentar da Revolução dos Cravos e devido à conhecida relação dos Alves Antunes com grandes nomes do Estado Novo, Efigénia e Avelino viram-se forçados a fugirem para o Brasil com os filhos, deixando assim em Portugal todo o património dos Alves Antunes ao encargo dos pais de Efigénia que se recusaram a deixar entregue aos “cães” toda a sua secular herança. Esta persistência vir-se-ia a mostrar fatal a 26 de Dezembro de 1974, data em que Efigénia recebe no Brasil a notícia de que os seus pais haviam sido mortos aquando um assalto à Quinta das Camélias. Efigénia ficou devastada. Não conseguia acreditar. Os seus pais haviam sido um grande pilar na sua vida e agora morriam assim “nas mãos de uma escumalha comunista, que sedenta de vingança, ceifa vidas como quem ceifa trigo”. Caiu numa profunda depressão. Os seus filhos, que significavam tanto para si, simplesmente deixaram de existir aos olhos dela. O seu marido – que apesar não sendo o homem que idealizara para si, havia-se revelado um companheiro fiel e amigo – não conseguia ajudá-la a sair daquele estado. Estava só. As notícias que chegavam de Portugal não eram de todo um auxílio à sua recuperação. Bem pelo contrário. A Casa de Vinhos Alves Antunes havia sido nacionalizada e todos os bens pertencentes à sua família pertenciam agora ao Estado. Era o fim. Efigénia estava nas ruas da amargura: os pais mortos, o património Alves Antunes entregue a pessoas que se achavam no direito de possuir o que sempre invejaram, exilada num país que não conhecia e rodeada de uma família que já nada lhe dizia, pensou que nada mais lhe poderia acontecer. Mas aconteceu. Passados dois anos de exílio no Brasil e sem dar sinais de que tal poderia acontecer, Avelino enforca-se à entrada de casa. Até hoje ninguém conhece os reais contornos de tal acontecimento nem o que aconteceu depois.
Os quatro anos seguintes da vida de Efigénia tornaram-se um total mistério. Não se sabe onde esteve, o que fez ou como conseguiu sobreviver. Nenhum dos filhos ousa sequer comentar com alguém o que se passou naquela época. O que se sabe, é que em 1980 regressa a Portugal e após uma longa batalha jurídica consegue em 1982 recuperar tudo o que havia sido seu. Mas a Efigénia que voltou a Portugal não era a Efigénia solidária e ternurenta da sua infância, nem era a Efigénia feliz dos seus tempos de maternidade, nem tão-pouco a Efigénia angustiada da Revolução. Não. A Efigénia que tinha voltado a Portugal era outra mulher. A alegria e a doçura haviam dado lugar à frieza e à seriedade. O amor pelos filhos havia sido substituído pelo rigor e disciplina. A sua ingenuidade deixara simplesmente de existir. Todos ficaram a conhecer uma mulher inteligente, forte e com grande visão empreendedora. Pegou nos resquícios em que o estado deixara a Casa de Vinhos e não só restaurou a glória do antigamente como também expandiu a empresa para novos horizontes, tais como a exportação massiva dos Portos Alves Antunes para o estrangeiro e a compra de pequenas companhias vinícolas que só veio a fortalecer o império Alves Antunes.
Entretanto, os seus filhos seguiram a sua vida. João, seguiu a carreira política e tornou-se presidente da Câmara Municipal de Braga. Ermelinda e Lourenço, assumiram cargos importantes na Casa de Vinhos. Ermelinda como Directora Administrativa da Sede de Lisboa e Lourenço como Vice-Presidente da empresa. O último elemento da família, Isaura, casara-se com um espanhol de sangue azul que faleceu dois meses após o matrimónio. “Afogada” em dinheiro, passou a ter uma vida de luxo e extravagância e é hoje em dia uma das presenças habituais das revistas “do social”. Efigénia ficou satisfeita com o rumo que os filhos tomaram, apesar de nunca o demonstrar. As únicas excepções eram Isaura, devido á superficialidade da sua vida, e em parte João. Via com bons olhos a carreira política do filho. Contudo, não perdoava-o por se ter casado com Luísa. Vinda directamente de um cabeleireiro de Gondomar, Luísa não era de todo a mulher com que queria ver João casado. Pobre, inculta e deslumbrada, Luísa tornou-se a pior inimiga de Efigénia. Odiava-a profundamente e se não fosse por Rosélia e Leonor, nem sequer lhe dirigiria a palavra.
Apesar deste senão, a vida de Efigénia corria muito bem. Mas no entanto a sua “carapaça de ferro” nunca quebrou. Desde os misteriosos acontecimentos da última metade da década de 70, Efigénia – apesar de demonstrar por mais que não seja um certo apreço pelos netos – pareceu deixar de ter sentimentos. Há cinco anos atrás aquando o trágico assassinato de Lourenço e da sua nora, não derramou uma única lágrima. No funeral não se notou um único laivo de tristeza nos seus olhos. Apenas aquela seriedade crua e dura que a caracteriza.
Enfim, agora ali estava ela com quase setenta anos e apesar de estar numa festa maravilhosa, a apresentar o que dava sinais de ser mais um trunfo para a Casa de Vinhos Alves Antunes e rodeada de gente alegre e divertida, Efigénia comportava-se da mesma forma como se comportava em família. Com austeridade.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Capítulo VI - Mentes Diabólicas

Uma vez instalada, Laura olhou em seu redor. Tudo naquele quarto lhe parecia estranho e ao mesmo tempo acolhedor. As paredes brancas com ligeiros floreados em preto, a cama poderosamente grande, revestida de uma colcha e almofadas em tons de preto e bordeou. O ambiente era obscuro mas estranhamente quente e sedutor. Sentou-se no sofá junto á janela e olhou para fora. Havia anoitecido e a primeira coisa em que reparou foi no jardim que rodeava a casa dos Alves Antunes, se durante o dia era belo, de noite, iluminado pelas ténues luzes que o rodeavam, era supremo.

Bateram à porta , Laura saltou do banco assustada.

- Laura, posso entrar?

Reconheceu a voz de Leonor do outro lado da porta.

- Ah Prima! Claro! Entra. Exclamou.

A porta abriu-se e Leonor espreitou entusiasticamente para dentro do quarto, entrou muito rapidamente e saltou para cima da cama. Descalçou os sapatinhos dourados, colocando-os os no chão ao lado da cama e entrelaçou as pernas, tal e qual uma menina.
- Já estava mesmo farta destes sapatos, só os calcei para chatear um bocadinho a mamã.
Riu-se maldosamente, ficando de seguida subitamente séria olhando para Laura.
- Sabes priminha, já tinha saudades tuas. Depois daquele incidente... pensei que já não voltarias para esta casa. Confesso que fiquei surpreendida.

Laura baixou de imediato o olhar e sentiu-se incomodada com a conversa e com as lembranças que lhe vieram á cabeça.

- Isso faz parte do passado! Ele já não está aqui! Além disso não tinha propriamente outro sítio para onde ir.

Leonor levantou-se da cama e caminhou suavemente até a janela.
- Ai é que te enganas... O Samuel ainda aqui está! E até te digo mais... Ele está a estudar no mesmo liceu que eu e a Rosélia... e aparentemente agora também o teu liceu não é? O papá disse que te recusaste a terminar o 12º ano no Colégio. Sendo assim, parece que vamos estudar juntas... – E sorriu matreiramente.

Laura petrificou e sentiu o seu corpo estremecer.

- Não é possível! O Tio mandou-o embora! - Exclamou quase gritando.

- Não. Ele quis que tu pensasses que o tinha mandado para longe, mas não mandou. Disse isso apenas para que não levantasses dificuldades na tua ida para o colégio.
Um sorriso trocista iluminava o rosto de Leonor.

- Bem, não te incomodo mais, vou para o meu quarto fazer os trabalhos de casa. Daqui a pouco com certeza iremos jantar. Aproveita e prepara a mochila... amanha vais ter um longo dia no liceu... – exclamou com ironia.

Leonor saiu do quarto, olhando no entanto para trás antes de sair. Parecia existir algo terrivelmente maquiavélico nas suas expressões.

O resto da noite foi um pouco estranha. Durante o jantar o ambiente parecia tenso. Havia trocas de olhares fulminantes entre as duas irmãs, o senhor João Antunes comia desesperadamente, quase como se passasse fome há dias e Madame Antunes falava sozinha de rugas e cremes. Antes de se deitar, já no seu quarto. Laura
No dia seguinte, Laura, Leonor e Rosélia entraram no colégio. Os grupos de estudantes paravam a olhar enquanto passavam. Mas as suas atenções já não eram para Leonor, mas sim para Laura. Os rapazes pareciam enfeitiçados perante a sua beleza estonteante, as raparigas roídas de inveja olhavam-na de alto a baixo. Os seus longos cabelos negros deslizavam ao vento e o uniforme assentava perfeitamente nas curvas esbeltas do corpo de Laura parecendo embelezar ainda mais cada contorno. Leonor, ao ver tudo aquilo, ficou furiosa. O que raio é que viam na sua prima? Era tão feia comparada a ela. Tinha que arranjar maneira de mudar isso rapidamente. Rosélia pensava para si, " Deus nos valha, ela é uma pecadora! Transpira obscenidades, provoca efeitos demoníacos nos moços. Filha do Diabo! Tenho que a salvar das trevas que a rodeiam!"Entraram no pavilhão, e prestes a separarem-se para as respectivas aulas, Leonor diz "Não esperem por mim depois das aulas." E segue o seu caminho.

Laura e Rosália estranham, mas continuam o seu caminho e esta agarra no braço de Laura e coloca-se á sua frente.

- Prima! Não vou comer durante uma semana e vou rezar todos os dias 5 Ave Marias e 3 Pais-nossos para que Deus Nosso Senhor te salve. Exclama com olhar de pena e vai-se embora sorrindo.

Laura fica sem palavras e chocada, " Deve ser maluca... Só pode..." pensa para si.
Já na sua aula, Laura senta-se e apresenta-se á turma. Sem tomar atenção, só consegue pensar onde estará Samuel. Procurou-o em todo o liceu e não o viu.

A porta da sala abre-se de rompante e um rapaz alto e esbelto entra. Laura deixa cair o caderno no chão. " Oh Deus... Samuel..." O rapaz parece não reparar em Laura, segue o seu caminho e senta-se numa cadeira ao fundo da sala.

Não posso acreditar que ele não me conheça, como é que é possível depois do que vivemos.

Depois da aula... vou colocar-me a sua frente de propósito... Quero ver se mesmo assim não me reconhece...

Acabada a aula, Laura tenta arrumar os pertences dentro da mochila o mais rápido possível para conseguir apanhar Samuel. Mas não consegue. Samuel tinha desaparecido.
Mas que raio! Ia jurar que ele não tinha tido tempo de sair da aula, que estranho. Bem terei que tentar amanha novamente.

Nessa noite, Laura sentada junto á janela, escrevia no seu diário. Hoje quando viu Samuel, subiu-lhe uma sensação de desejo á cabeça, algo tão forte como aquilo que lhe tinha acontecido antes, talvez mais... havia algo que enfeitiçava, naquele rapaz. Mas ele parecia já não reparar nela. Uma tristeza súbita tomou conta de Laura. Apetecia-lhe chorar. Samuel não reparava nela. A família Alves Antunes, tinha algo de sinistro, principalmente a sua prima Leonor, parecia haver maldade dentro dela, raiva, algo que Laura não conseguia entender.

Olhou para o jardim para contemplar a vista. Mas havia algo no fundo do jardim... uma sombra... algo que não fazia parte... era uma figura... uma pessoa... olhava directamente para a sua janela... mas estava tão escuro que não conseguia perceber quem era... subitamente a figura sumiu-se por entre as sombras da noite... desapareceu... Laura sentiu um arrepio e gelou.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Capítulo V - Segredos

Deslizou as pernas nuas pelo pátio do Colégio, ao lado da acanhada e retraída irmã, absorvendo aqueles olhares masculinos a ela lançados como barras de energia. As meias puxadas até ao joelho não escondiam qualquer glória: o resplandecer da sua pele de pêssego ofuscava um baço torrado pelo sol pelos olhos dos outros alunos com uma clara evidência de deslumbre. Leonor podia não ter vergonhas, mas orgulhava-se dos dons que herdara do lado feminino da família.
Rosélia retraiu-se olhando para a irmã fugazmente levando uma das mãos ao seu pescoço e agarrando no seu crucifixo. Com a outra, apertava os livros contra o peito. Olhava de soslaio para a criatura bamboleante que a acompanhava até atingirem o pátio principal do Colégio. Algumas miúdas correram na sua direcção – na de Leonor, não na de Rosélia. Rodearam-na com conversetas de adolescente, algumas risadas animadas, e depois calaram-se por entre sussurros, altura em que Leonor gira sobre os calcanhares e enfrenta a irmã, colocando-lhe uma mão sobre o seu ombro, embora de nobre nada tivesse aquele gesto brusco.
– Porque é que não me deixas da mão, agora, e não te piras? Vai lá ter com as tuas amigas e não me chateies.
Rosélia balbuciou um par de palavras que não chegaram a ser terminadas, e franziu a testa num olhar de arrogância lançado à irmã mais velha, que a olhava de cima para baixo, altiva. Afastou-se lentamente, arrastando os pezinhos pequenos até uma criaturinha acanhada, ruiva, de óculos arredondados e sardas a pintarem-lhe o nariz, sentada sobre um dos bancos metalizados sobre as telhas cor de tijolo decorativas do pátio lateral. Leonor sorriu, e retomou ao seu círculo social.
– Então, como foi ontem?
A voz surgia de uma figura alta, rejubilante, de uma criatura excitada, as palavras saíam-lhe quase cantadas, e se pudesse adivinhar, Leonor visualizava-a já, num futuro muito próximo, de joelhos à sua frente, impedindo-lhe a passagem, a salivar-se perante a necessidade de informação. Parecia que lhe via o sol reflectido nos olhos de tanta ansiedade, e se essa luz interior e misteriosa se propagasse por toda ela poderia quase visualizar contornos brilhantes a pintarem-lhes os fios de cabelos loiros lisos, até aos ombros, e a descer-lhe por toda a pele torrada pelas praias da República Dominicana.
Por fim, encolheu os ombros e resmungou: – O mesmo de sempre.
Parecia que alguém tinha arrancado toda a luz dos olhos famintos da amiga. – O mesmo de sempre? Mas tu nunca me contas nada! Não confias em mim, é isso? Vá, diz-me lá como é que foi! Ele…? E tu…? Dormiste alguma coisa, sequer?
– Cala-te, Samanta, por amor de Deus!
Atravessaram todo o pátio, arrastando os pés pelo pavimento languidamente, mesmo antes da campainha tocar e anunciar a entrada definitiva de todos os estudantes na primeira aula da manhã. Leonor fez-se acompanhar pela faminta Samanta e as restantes duas que riam em gargalhadas ocultas pelas suas mãos delicadas, marmóreas, e unhas esguias à francesa, anéis de diamantes e pulseiras tilintantes. Pararam defronte da porta de acesso ao corredor interior, momento o qual Leonor aproveitou para olhar em volta. Momento o qual Samanta retomara o seu lamento.
– Não confias em mim, não é? Sabes que me podes contar qualquer coisa, sou a tua melhor amiga!
Leonor bufou antes de olhar uma última vez e reparar num último grupo de raparigas que caminhava lentamente na direcção da porta, lançando um daqueles olhares de código em direcção a Samanta, que imediatamente o entendeu. O benefício de uma amizade duradoira, desde que tinham, pelo menos, seis anos, era que ambas teriam aprendido a ler as suas expressões de tal forma que as suas conversas poderiam reduzir-se apenas a um par de grunhidos e uma longa afronta de expressões e movimentos corporais, que no fundo, tudo se concluía como uma longa conversa telepática. Naquele momento, teria sido precisamente o que se passara. E Samanta, compreendendo perfeitamente o que Leonor lhe gesticulara com as expressões faciais mudas, encostou-se a uma parede de braços cruzados à sua frente, sorrindo de esgueira, enquanto as rapariguinhas passavam por elas, até que apenas as duas sobraram no pátio.
– Mas o que é que tu queres que eu te diga, que fui para a cama com ele e que estivemos a noite toda naquilo?!
Samanta abriu a boca, provavelmente numa revolta pessoal, em mais lamentos famintos de informação e a pedir explicações, porque é que a amiga lhe estava a falar assim. Mas antes que o fizesse, antes que fizesse tudo isso e sabe Deus que mais, os seus olhos vidraram-se, atónita, apenas por um par de segundos. Depois, franziu uma sobrancelha e apontou para trás das costas de Leonor. De seguida, a sua derradeira reacção, foi rir, mas apenas em gargalhadas pequeninas, enquanto olhava para a situação com que se deparava.
Rosélia estacara atrás da irmã sem que esta se desse conta e escutara as suas palavras blasfémicas. Agarrando os seus livros contra o peito, a outra mão ainda escondida sob o decote tocando levemente com os dedos sobre a cruz de ouro, ao lado da criaturinha ruiva e sardenta, ela não se moveu, mas não se mostrou espantada. Não, Rosélia não se deixou levar pela história escandalosa da irmã – porque, na verdade, já não se admirava. Sabia que irmã tinha demasiados namorados, e constantemente ouvia sons esquisitos vindos do quarto dela, que ela, pé ante pé, caminhava pelo corredor e se encostava às paredes a tentar ouvir, até que descobriu que encostando o copo na sua parede e calcando o ouvido contra o vidro era mais eficaz. Nunca compreendera que sons eram aqueles. Estalidos de língua, risos, vozes abafadas por algo, sons fugazes de abafares, respirações… E, depois, na manhã seguinte, sempre via aquele escadote escondido, todos os dias entortado, certa vez, até, eles esqueceram-se dele ali mesmo, encostado ao parapeito da janela da irmã. Escadote, esse que, mais tarde, o jardineiro removeu, não fosse a Madame Antunes deparar-se com aquilo e organizar imediatamente uma escandaleira.
Maria Leonor voltou-se para trás, na direcção do olhar de zombaria de Samanta, para se deparar com um novo olhar, o da sua irmã, de lábio franzido, quase a mordê-lo, olhos fixados nela, sobrancelhas carregadas de fúria. Bufou apressadamente, não perdendo tempo em agarrar a irmã pelos ombros e arrastá-la para onde ninguém as ouvisse, de caminho fazendo sinal, com uma mão desdenhosa, às restantes duas que se fossem embora dali e deixassem ambas ter uma conversa devidamente privada.
– O que tu ouviste não é verdade – desculpou-se. – Eu só disse aquilo para calar a Samanta.
– Não sejas mentirosa. Pensas que eu não tinha notado? Os nossos quartos não são assim tão distantes um do outro, eu consigo ouvir-te. E pensas que não vi o escadote à tua janela? Eu sempre soube que eras por esses caminhos…
Leonor afrontou a irmã com um breve ar de choque, que depressa se dissipou, dando lugar à raiva. – Ok, viste o escadote, ouviste coisas. Mas tu és demasiado miudinha para perceber. O que tens de perceber é que o que eu disse não era verdade. E que isto não sai daqui. Ai de ti que vás contar alguma coisa à mamã.
– Outra ameaça? Se chegarmos a um acordo, acho que me posso calar: hoje, quando a Laura chegar, tu ficas no teu lugar e deixas-me a mim fazer o que me compete. Sabes muito bem que é o que eu quero. – E, de soslaio, voltando a cabecinha coroada de fios loiros que resplandeciam àquela luz solar matinal divinal, bufou, imperceptível à irmã: – Aquela alma tanto que precisa de uma salvação.
A mais velha abriu a boca, como que preparada para ripostar uma ríspida resposta, mas deteve-se. De repente, um sorriso malicioso formou-se entre os seus lábios finos e delicados de rosa madura, e os olhos pintados a negro desviaram-se do campo de visão da irmã. Algo lhe atravessa a mente, um plano, talvez. Mas Rosélia não se apercebeu, ainda demasiado embrenhada nos seus pensamentos.
Por fim, afastou o corpo da irmã, num passo lento, e olhou as unhas limadas de fresco da sua mão esquerda, apoiando o cotovelo sobre o braço direito. – Ok, se é assim que queres. Podes ficar com a Laura, faz dela uma das tuas apóstolas e converte-a lá à tua doutrina.
Os olhos de Rosélia fixaram-se novamente na irmã e ela nada disse. Anuiu, de sobrancelhas franzidas de estranheza, e limitou-se a afastar, caminhando na direcção do corredor de salas de aula, até à sala devida. Bateu à porta e entrou sorrateiramente. A sala preenchida de olhos adolescentes concentrou a sua atenção nela. A professora mandou-a entrar, não esquecendo de lhe perguntar a que se devia tamanho atraso. Rosélia sentou-se no seu lugar e sorriu disfarçadamente.
– Coisas de família. Mas está tudo bem.
* * *
A mamã Antunes decidira que as filhas haviam de receber a prima nos mais primorosos vestuários e forçara-as a despirem a farda escolar, substituindo por vestidos vistosos. Rosélia desceu a escadaria nas suas sabrinas pretas de lacinho de seda pela altura do mindinho, enfiada acanhadamente num vestido bege pelos joelhos e uma faixa preta na cintura. Ajeitava-o à medida que calcava os degraus languidamente, esforçando-se por dominá-los como uma verdadeira lady. Mas as sabrinas tornavam-se desconfortáveis, acima de tudo enquanto tentava tirar aquela sensação de desconforto da faixa de tafetá negra que lhe apertava a barriga com força; às tantas, a direita lá lhe deslizou do pé e rolou escadaria abaixo até ao chão marmóreo do hall de entrada.
Saltitou com um só pé os restantes cinco degraus até ao chão, quando finalmente se agachou e agarrou na sabrina perdida. Por fim, sentou-se no último degrau e arregaçou o vestido, enquanto calçava a sabrinazinha com o pé descansado sobre o seu joelho.
Um reboliço de sons de tecidos a roçarem uns nos outros fez-se ouvir nesse momento e imediatamente a mamã Antunes surge coberta num casaco vermelho cor de vinho de gola eriçada até às suas orelhas, carregando os fartos cabelos claros num gancho dourado incrustado com um par de diamantes, numa banana ideal. O som das suas calças tafetá negro, o roçar de ambas as pernas uma na outra, alertou a filha, que imediatamente levantara a cabeça a acudir ao som da mãe a entrar primordialmente no hall de entrada, apenas para ver a filha agachada sobre um pé descalço.
– Filha! Francamente, a tua prima está quase a chegar e tu assim nesses preparos?
Rosélia ergueu-se apressadamente, alongando o cetim do vestidinho branco com as suas mãos delicadas, enquanto a mamã Antunes, erguida como uma Senhora à sua frente, a olhava por entre os cabelos e as dobras dos tecidos, tentando aperceber-se de algo erro que ali não estava. – Desculpe, mamã – disse, por fim, Rosélia. – Estava só a ajeitar a sabrina. A mamã sabe que este par não é muito confortável, mas se insiste que eu use em ocasiões de cerimónia…
– Deixa de ser esquisita, Rosélia – alertou Madame Antunes enquanto examinava o cabelo da filha, retirando o pequenino gancho de prata com uma flor de rubi incrustada, puxando uma mescla do seu cabelo para trás e colocando-o de novo, qual coroa devidamente colocada na cabecinha da sua filha herdeira de trono. – Com a tua idade, já eu andava em saltos altos. Até já corria neles. Vivia neles. Como uma senhora que tem o dever de se apresentar à sociedade – e conquistá-la! – deve sempre habituar-se a usar saltos altos. Acho um ultraje que não os uses, Rosélia, mas como é só para a chegada da tua prima, perdoo-te. Mas começa a praticar que é bom que os uses logo à noite!
Rosélia sorriu abertamente, exibindo os primorosos dentes brancos à mamã Antunes. – Claro, mamã.
Madame Antunes retirou as mãos do cabelo da filha, recuou um passo e sorriu, unindo as palmas das mãos, como quem acaba de conquistar um prémio. – Pronto! Estás linda, filha. E onde é que está a tua irmã? – Um buzinar faz-se ouvir, vindo do exterior. Madame Antunes volta-se para a porta, levando as mãos à cabeça, e retoma para a filha: – Já a tua prima chegou e ela ainda não está aqui! Josefa! Josefa!
O Senhor Antunes surge apressado, escorregando ligeiramente nos seus sapatos engraxados e brilhantes, mas casualmente enfiado nas suas calças caqui e o seu pullover cinzento que entalava uma camisa. Parou defronte de uma prata poisada sobre uma pequena cómoda no hall de entrada, olhando para os seus cabelos puxados para trás com um pente de dente fino, e por fim sorri e alude à mulher que receberá a menina, saindo através das enormes portas de carvalho cravado.
Josefa surge apressada ao lado da Madame, que imediatamente lhe ordena que suba aquela escadaria medonha e ordene à menina Leonor que desça rapidamente e sem demoras, que a prima já chegou e ela ainda aqui não está! Depois de uma vénia apressada e confusa, Josefa galga os degraus dois a dois e desaparece no topo da escadaria.
A porta abre-se. Papá Antunes, agora estranhamente reduzido a um mero pagem de uma bela duquesa, carrega as três malas de Laura, que caminha ao lado do homem delicadamente como uma flor desabrochando num campo de girassóis. O seu cabelo negro ondula ao longo do blazer branco que trás pendurado pelas costas do vestidinho azul de seda enquanto caminha em passos de dança suave e plena de sensualidade, deslizando os pés nas sandálias de salto alto brancas de fivela prateada. Agarra as abas do casaquinho com as suas mãos, exibindo os anéis de prata de ouro de herança dos seus pais, agora defuntos, e olha a casa à sua volta com um olhar perdido de menina órfã que é reintegrada em casa alheia. Por fim, deixa cair o olhar sobre Rosélia; sorri, mas não é na prima que se deixa fixar. Antes, desliza os olhos na direcção de Madame Antunes, que já caminha na sua direcção de braços abertos e chamando o seu nome. É quando a Madame Antunes larga a prima Laura que esta se vai fixar em Rosélia, que a olha deleitada os gestos majestosos da prima.
– Como cresceste, prima! – E, com isto, abraça-a. – E onde está a minha outra prima? Ainda me lembro de ter duas!
– Aqui mesmo.
A voz de Leonor faz todos os inquilinos da casa voltarem os olhos na sua direcção, e vendo-a no seu vestidinho de alças, que a mamã Antunes lhe comprara num dos seus verões em Agualva, todo ele amarelo, como um canário bebé, de estampados florais pretos, coberta no seu casaquinho preto rendado, ninguém se não a Madame Antunes se importou. Principalmente quando a senhora deslizou os olhos pelas pernas desnudadas da filha e se deparou com sandálias douradas atadas à perna.
– Leonor! Eu não te disse que…
– Eu sei, mamã. Mas já nada me servia, só me restava isto. – Uma vez alcançado o chão de mármore do hall, Leonor abraçou a prima. – Há tantos anos, Laura! Como tens passado? Temos tido imensas saudades tuas, aqui!
Madame Antunes interveio no minuto preciso em que Laura abria a boca para responder à prima. – Bom, meninas, a vossa prima deve estar cansadíssima da viagem, porque é que não lhe amos um pouco de privacidade e a deixamos descansar? Laura, temos dois quartos vagos, podes escolher onde podes ficar se…
– A prima Laura pode ficar no quarto ao lado do meu, mamã? – Interpôs Leonor imediatamente, sentindo o olhar fulminante da irmã ao seu lado. – Julgo que temos muito de falar. Quero dizer, não duvido que a Rosélia tenha coisas para contar à prima Laura, também… – O queixo de Rosélia deixou-se descair ligeiramente quando ouviu a afirmação da irmã, mas manteve-se na sua postura. Então, pensou, era aquele o seu jogo… – Mas a mamã sabe como eu e a Laura somos.
Madame Antunes sorri mesmo antes de dar a ordem a Josefa que organize o quarto de hóspedes ao lado do da menina Leonor, e desaparece do salão enquanto o papá Antunes, agora praticamente tornado mordomo Antunes por aquela prima que não via havia cinco anos, sobe as escadarias carregando as suas três malas.
Nesse momento, no momento em que os restantes habitantes da casa lhes voltaram as costas, Leonor voltou-se ligeira e delicadamente para a irmã e sussurrou-lhe ao ouvido, mesmo antes de desaparecer pelas escadas acima, ao lado da prima Laura, conversando animadamente, como se, de facto, nada tivesse acontecido, e deixando Rosélia, para trás, imensa em raiva e dominada por fúria: – Esqueceste-te, maninha, que eu também cá sei dos teus segredos. Agora, é que acho que podemos dizer que temos um acordo.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Capítulo IV - Anúncio de uma Chegada

Os quatro elementos que compunham a mesa de pequeno-almoço dos Alves Antunes encontravam-se em silêncio sepulcral. A tempestade havia finalmente amainado, contudo ninguém dera conta. Estavam todos submersos nos seus pensamentos. Era curioso verificar como os hábitos alimentares e o comportamento de cada um naquela manhã eram uma espécie de espelho do que lhes ia na alma.
Leonor, que encontrava-se à esquerda do pai, estando este à cabeceira da mesa, qual chefe de família cristã, trabalhadora e assente na moral e nos bons costumes, barrava as torradas ainda fumegantes com a compota de morango que a execrável tia Ermelinda trazia da sua quinta do Ribatejo. Detestava a Tia Ermelinda. Sempre com aqueles tiques de dondoca fútil e oca, Mal esse que a família da parte do pai infelizmente padecia, com aquele voz que tinha a mania de estender as últimas sílabas das palavras, em que o seu nome soava na boca dela a qualquer coisa como “Leonoooooooooorrr”, e, sendo o que a irritava mais, trazia sempre incontáveis pulseiras de ouro cheias de berloques que anunciavam sempre a sua presença mesmo antes de sequer ser vista. Costumava comentar com as suas amigas que da mesma maneira que os gatos tinham guizos e as vacas tinham badalos, a sua Tia tinha pulseiras. Mas se havia coisa que não pensava naquela manhã era de todo na Tia Ermelinda. Bem pelo contrário. Barrou a torrada toda e discretamente lambeu os restos de compota que ficaram na faca. Lambeu bem lentamente. Estava deliciada a lembrar-se dos beijos quentes e húmidos que trocara poucas horas antes. E que provavelmente iria voltar a trocar.
Do outro lado da mesa, bem defronte a Leonor e à direita do marido estava sentada Madame Antunes. Lulu, para as amigas, brincava com as três folhas de alface e os seis pinhões que compunham o seu prato do pequeno-almoço. Acompanhado de um copo Huo Qing, um chá extremamente chique da província chinesa de Anhui, este seu pequeno-almoço obedecia ao plano alimentar feito pelo Dr. Póvoas para que Lulu perdesse os três quilos que a atormentavam há já alguns meses. Contudo, naquela manhã estava desinteressada em tão desinteressante “manjar” matutino. Uma grave preocupação ocupava os seus pensamentos. “ Será que o meu creme anti-rugas do Dr. Caspari está a fazer resultado? Saindo daqui vou directa ao espelho do quarto! Bem, a Tétinha disse-me que fazia maravilhas, mas essa aí era capaz de me dar arsénico e dizer-me que era um cocktail requintadíssimo. Puta. Ai Jesus! Perdoai-me a blasfémia Nosso Senhor!” Perdia a fome só de pensar em tamanha consternação.
Na cabeceira da mesa, João Antunes, o Rei, como os empregados da casa o chamavam, cortava com uma certa agressividade as fatias crocantes de bacon que eram a sua perdição matinal. O Rei, esperava ter a mesma agressividade quando pegasse na sua espingarda e matasse tudo quanto era passarada que voasse à sua frente na tarde de caça que programara com os seus amigos (engenheiros, ministros, deputados, doutores e até algumas figuras da Casa Real Espanhola e Monegasca). João adorava caçar. Particularmente aves. Como gostava de ver a bala embater no corpo penugento dos pássaros, vê-los cair por terra, pegá-los e sentir o odor daquele cadáver animal. Era uma obsessão doentia. Tudo começara quando com os seus singelos 4 anos, João fora à praia com os pais (Tamariz, óbvio…) e ao sair do carro (Mercedez, mais que óbvio…) uma gaivota, que decerto tinha o GPS avariado, foi contra a cara da pobre criança. Lavado em sangue, os papás Antunes levaram João para o hospital (será mesmo necessário escrever “particular”?) onde teve que levar 17 pontos na bochecha esquerda. Desde então, tem feito da sua vida uma vendeta contra o mundo ornitológico. Enquanto João viver, nenhuma ave estará a salvo.
Finalmente, o último elemento do clã Antunes, nada comia. Sentada do lado esquerdo de Tétinha, Rosélia apenas tinha à sua frente um simples copo de água (benta, para purificar…). Tentava esquecer o pequeno “acidente” que tivera nos seus aposentos sanitários. “Respira Rosélia Antunes; volta…”, dizia a si própria, numa tentativa frustrada de se acalmar. Visto não resultar, tentou rezar. Rezou, rezou, rezou, rezou e ainda rezou mais um pouco, mas nada. Aquele “momento” não lhe saía da cabeça. Quando chegara à mesa do pequeno-almoço disfarçara, mas dentro si chorava lágrimas de sangue. Estava revoltada. Tinha tido uma experiência que por um lado não queria ter, mas por outro desejava-a intensamente. Não conseguia entender. Enervou-se pelos seus pais não perceberem o estado dela. Enervou-se ainda mais ao pensar na possibilidade dos seus pais perceberem. A vergonha… a desonra…
Era assim o retrato psicológico e alimentar da família Antunes. A calma, teatralizada nalguns casos, reinava. Contudo tudo iria mudar com o anúncio que Lulu fez:
- Ah! Que disparate! Como eu tenho a cabeça… Meninas, a vossa prima Laura sai hoje do Colégio. Deve estar aí pela hora do almoço.
O mundo que girava em torno de Rosélia e Laura parou. Uma torrada caiu das mãos de uma e um copo fora entornado pela outra. Uma apertou a faca com força, a outra crispou as mãos no tampo da mesa. Os beijos trocados e os orgasmos sentidos desapareceram da mente das irmãs. Aliás, tudo desaparecera. Naquele momento a única coisa que existia eram elas as duas. Os seus olhos encontraram-se e daí não mais saíram. A corrente visual era tensa e feroz. Cada uma exalava fúria e uma raiva nunca antes vista. Era algo de animalesco. Entre elas surgira um ódio profundo e sofrido que tinha como explicação apenas uma: a Laura ia chegar. Os pais, que não haviam dado conta da súbita transformação de humores das filhas e que falavam sobre a estadia de Laura na mansão, foram interrompidos por Rosélia que pedia se poderia ir para o quarto pois sentia-se maldisposta. Dada a aprovação, logo se seguiu Leonor dando a desculpa que iria acompanhar a irmã. Levantaram-se e saíram da sala. Viraram à direita e atravessaram o Salão de Bilhar. Nada disseram e nunca por um momento se olharam. No fim do Salão, viraram à esquerda e entrando no hall dirigiram-se à grande escadaria, que dava acesso ao piso dos quartos, e subiram-na dando passadas firmes e sonoras. As escadas desembocavam a meio de um grande corredor. O quarto de Leonor era do lado esquerdo. O quarto de Rosélia era do lado direito. Vendo-se no cimo das escadas, pararam, viraram-se uma para a outra olhando-se intensamente durante alguns segundos. Até que Leonor dispara:
- Ouve-me e ouve-me com atenção pois eu só vou dizer isto uma única vez: não te atravesses no meu caminho.
E virando costas à irmã, caminhou em direcção ao seu quarto.
- Isso é uma ameaça? – Perguntou friamente Rosélia mantendo-se fixa como uma estátua.
Sem parar de caminhar e sem se virar para a irmã, Leonor grita do fundo do corredor:
-É.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Capitulo III - Reencontro com o Passado

As malas estavam finalmente feitas em cima da cama. Estava uma manhã alegre e o sol brilhava no céu azul celestial. Instalara-se no entanto um clima de tristeza em redor de Laura, enquanto contemplava o jardim em redor daquele Colégio Interno d'os Três Pastorinhos em Montemor o Novo, que havia sido o seu lar nos ultimos 5 anos. Não se sentia preparada para voltar a lidar com os problemas que enfrentara no passado, muito menos para relembrar de tão perto a solidão que sentira junto de todos aqueles que supostamente seriam a sua familia, pelo menos a unica que lhe restava. Aproximou-se do espelho longo majestoso que se encontrava junto á parede e observou a sua figura alta e elegante, o cabelo negro e ondulado caia-lhe pelos ombros, os seus olhos de um azul intenso acinzentado intenso brilhavam com a claridade e as formas do seu corpo escultural faziam-se notar através do vestido azul e justo de seda quase transparente, que lhe caia abaixo do joelho.
Tudo acontecera numa noite gelada e sombria, Laura era uma adolescente nos seus tenros e inocentes 15 anos. Seus pais estavam já deitados no quarto e Laura preparava-se para fazer o mesmo. Subitamente ouviu algo partir na andar de baixo, assustada pensou ir chamar os pais ao quarto, mas o seu instinto levou-a a descer as escadas em direcção ao ruido. Pé ante pé foi andando pelo corredor em direcção ás escadas. Quando se preparava para descer o ruido tornou-se subitamente mais próximo. Laura parou, o coração quase lhe saltava do peito. Duas vozes distintas mantinham um diálogo e embora não conseguisse perceber o que diziam era obvio que subiam as escadas. Desesperada correu em direcção ao seu quarto e escondeu-se por baixo da cama. Duas figuras negras passaram pelo corredor em direcção ao quarto dos seus pais. Após um longo periodo de silêncio ouviu um grito " NÃOOO!!!!" e de seguida dois tiros. Laura chorava e soluçava escondida. Queria sair dali e ir socorrer os seus pais mas sabia que não podia ou o seu destino seria o mesmo. Ouviu passos e tapou a boca para que não a ouvissem. Uma das figuras parou na entrada do seu quarto, entrou e percorreu o quarto. Enquanto lutava para se manter em silêncio por baixo da cama, a outra figura entrou. " Eram só eles, a miuda não está cá. Vamos embora!" disse uma voz masculina, e sairam do quarto. Pouco depois um carro arrancou lá fora.
Depois dessa noite, enquanto a policia tudo fazia para descobrir quem tinha assassinado os seus pais, Laura foi levada para casa dos Alves Antunes, seus tios.
Com a tragédia a jovem tornara-se completamente diferente, deixara de ser uma doce e ingénua menina de 15 aninhos e passara a ser a Louca e profana mulher dos diabos como o seu querido tio João Dinis da Cunha dos Alves Antunes lhe costumava chamar. Mas para Laura era bastante divertido até por vezes viver ali. A sua tia era a tipica Miss com manias de Cinha jardim e um jeitinho de Lili Caneças com tiques religiosos, o seu tio por sua vez poderia-se comparar a um Chiwawa tal a forma como era comandado pela esposa. Mas o mais interessante de tudo eram as suas primas que estabeleciam dentro do mesmo tecto uma verdadeira batalha religiosa entre a santidade e o profeno.O certo é que Laura comportava-se de forma extemamente incomodativa para seus tios. Não obedecia a ninguem e fechava-se no quarto ou passava grande parte do tempo no estábulo com os cavalos, eram animais lindos a seu ver, adorava montar no seu cavalo preferido, Jesualdo, e passar tardes inteiras ali.
Certo dia enquanto se preparava para montar Jesualdo, vislumbrou a figura mais bela de sempre no fundo dos estábulos. Um homem jovem, alto e robusto, cabelos longos e escuros até ao pescoço, peito desnudado exibindo os mais perfeitos abdominais, calças de ganga justas que adelgaçavam tudo quanto eram formas naquele corpo deslumbrante. Os olhos de Laura ficaram vidrados, um ardor fulminou-lhe o peito e as suas pernas perderam a força caindo de joelhos no chão. O jovem vendo-a de joelhos aprontou-se a ajudar, mas Laura num acesso de excitação e loucura atirou-se para cima dele derrubando-o no chão e procurou os seus labios ardentemente, sendo surpreendentemente correspondida. Subitamente o Mordomo Ambrósio entrou nos estábulos e chocado correu para a casa a contar o que vira. Escusado será dizer que no dia seguinte Laura estava de malas feitas pronta para ser levada para o Colégio Interno d'os Três Pastorinhos em Montemor o Novo.
Passados 5 anos ali estava laura, pronta a despedir-se do colégio e voltar a a entrar na vida dos Alves Antunes. A unica coisa que via na sua cabeça naquele momento era a imagem daquele homem, o toque dos seus labios carnudos, o desejo que a consumiu naquele momento há tanto tempo atrás e que ainda estava bem vivo dentro de si.
Será que ele ainda lá estava?
Pôs as malas na bagageira do taxi, sentou-se no banco de trás e disse, - " Para a Mansão dos Alves Antunes."

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Capítulo II - Menina e Moça

Já a tempestade cessara por completo e o sol espreitava envergonhadamentre por entre as espessas nuvens cinzentas, carregadas de mais doses épicas de chuva a descarregar mais tarde nesse dia, porventura ao final da tarde ou mesmo durante o almoço, quando a janela do quarto de cima, última porta à direita no corredor que nascia das gloriosas escadas de mármore malhado e corrimão de carvalho envernizado, cessou por completo, num seco e forte baque. Um ligeiríssimo raio de sol matinal iluminou o que então não era inédito, mas algumas horas mais tarde e teria sido o escândalo absoluto dos Alves Antunes e toda a história daquela boa família e respeitada casa.
De longe, não passava de uma silhueta escura, mas ao perto identificávamos um corpo masculino envolto num casaco de cabedal preto e calças de ganga esfoladas nas áreas trazeira e em volta dos joelhos. Um longo escadote de madeira, de aparência demasiado frágil para segurar sequer uma criança, esperava-o, pendurado naquela janela como se todos os eventos decorridos atrás daquelas paredes sagradas desde sempre estivessem planeados, ou mesmo como se toda a sua vida, a vida daquelas paredes Crstãs, aquele escadote sempre ali tivesse estado, e sempre com o mesmo destino. Era como se a menina – e no entanto, já mulher – que largava janela fora o seu Romeu o fizesse já com uma prática plena de sabedoria, com uma nobreza de gesto tal que familiaridade com tamanho crime assim só mesmo por herança genética, e quem o visse fazer, poderia vir a crer que a mamã fizera o mesmo com a sua idade – e fosse esse o caso, ainda a má língua girava para onde lhe aprovesse mais e estalava entre os dentes: “Gente católica é o que se vê”.
Do outro lado da janela, a menina, já mulher, tocou com as pontas dos dedos ainda ligeiramente suadas nos lábios um pouco carnudos, ainda sentido a forma quente dos lábios alheios que lentamente se lhe ia desvanecendo, o fogo leve daquele beijo que, antes de cerrar por completo a janela, ele lhe espetara com brusquidão, prometendo que no dia seguinte, estaria lá – fosse onde lá fosse – à sua espera, à mesmoa hora – fosse a que horas fosse. Como se ainda fosse adolescente, girou sobre os calcanhares e saltitou o seu caminho até ao closet pessoal.
Ignorou o toque constante do alarme despertador atrás de si, poisado na mesa de cabeceira ao lado da fotografia sua e de sua irmã. Como uma bonita menina, digna portadora do título de filha de uma Alves Antunes, a menina nada fez e esperou. A rotina era o que melhor poderia definir as suas vidas, de acordo com a moça. Esperou que, dentro de cerca de cinco minutos, a empregada, a dona Josefa, lhe batesse à porta do quarto com três toques secos com os seus nós dos dedos esguios e subnutridos e dissesse “Menina Leonor, são horas de acordar.” E talvez vinte – ou quem sabe até trinta, dependendo da disposição com que os Alves Antunes progenitores haviam acordado naquela manhã tempestuosa – minutos depois, voltaria a dona Josefa, senhora cabisbaixa, divorciada e com três filhos emigrados na França a viver com a sua prima que, por obra e graça do Espírito Santo, deixara de saber falar Português, ainda que para lá se tenha mudado com alguns bons dezasseis anos; e as criancinhas, essas, que aprenderam a libertar-se do diminutivo naquele país de evolução a Portugal incomparável, essas se haviam perdido nos dialectos franceses, que era oui madames para aqui, e mais, monsieur, je ne croix pas en ce que vous dit, cantando Edith Piàf por aqui e por ali, e mais algumas pouco ortodoxas misturas de palavras desse tal novo estilo chamado de Rap, e do pouco português que sabiam, limitava-se a três palavras, Pastel de Nata, que se vira a mãe obrigada a escrever a cartinha de Natal em francês, em que junto desta lhes enviava uma caixinha de pastéis de Nata – tinha lá agora dinheiro e tempo para a coisa genuína que era o pastel de Belém – e se havia coisa que as crianças haviam recordado era das palavras Pastel de Nata. Tao engraçado lhe acharam que assim nomearam o gatinho rafeiro.
Mas menina Leonor esqueceu todas estas barbaridades – se é que alguma vez se atreveram a atravessar-lhe o espírito – quando retirou a farda escolar do Colégio e a encostou ao corpinho delgado defronte do espelho de corpo inteiro preso à parede do fundo do seu closet, não porque alguma vez achasse que aquele maldito molho de trapos amarelos e pretos alguma vez lhe ficassem bem, mas porque imaginou como seria aquele dia de regresso às aulas ao colégiozinho de freiras, como lhe costumava chamar, principalmente agora que era finalista e podia, como também era recorrente dizer a si mesma ou às amigas, “mandar a irmãzinha bugiar com mais estilo”, que semple clamava que não lhe largava o pé com lamechices católicas.
Banho tomado, fresca e lavadinha, a menina parou defronte do espelho da casa de banho e penteou-se enquanto lentamente construía os passos a seguir no dia que aí vinha. Manipuladora, imprevisível mas infalível pensadora nos seus planos, assim se pintava a imagem mais negativa que se podia da menina Maria Leonor dos Alves Antunes, que com um sorriso de malvadez colado aos lábios que deveriam ser puros, mas que apenas minutos antes um jovem arruaceito de cabedal e ganga rasgada roubara todo o pudor – e quem sabe que mais –, rasgava os cantos da boca e exibia os dentes primorosamente esbranquiçados pelo dentista, curiosamente o mesmo que o Dr. Tallon, perfeitinhas mas de perfeição fabricada por aparelhos ortodônticos colocados na menina quando ainda tinha treze anos, perfeição essa que agora, outros miúdos de treze anos usufruíam, mas a menina chamava-os de “Caminhos de Ferros” ou “Pára-choques”. Assim, a menina sorria defronte do espelho enquanto passava a escova pelos cabelos curtos vermelhos vivos, que lhes aparecera um dia, aos Alves Antunes, a sua filha mais velha de cabelos pintados daquela cor, da cor do vinho, vermelho escuros – que àquela altura, meses depois, se parecia mais com cor de barro – e todos eles cortados, cortadinhos pelo pescoço; aquela menina, que tinha um cabelo tão bonito quando era apenas mocinha, longos cabelos lisos com aquelas ligeiras e naturais curvas que lhe emolduravam a cara numa perfeição idêntica à de uma estátua romana, com pequeninos caracóis a coroarem-lhe a testa pequena, clarinhos, dourados, e depois escureciam em pequena e suaves ondas que lhe roçavam os ombros nus se entrelaçavam alguns nas alças do vestidinho azul bebé que se atavam com um lacinho ao pé do pescoço. Mas esta, era a visão dos pais, dos papás babados que fizeram tudo – ou pensaram que sim – para que auqela menina crescesse à imagem reflectida de uma Debutante, mas nos limites da aparência apenas.
Depois dos cabelos curtos que lhe deixavam a descoberto o fino, pálido e atrevido pescoço estarem rebeldemente penteados, em pontas irrequietas que se movimentavam conforme a sua dona andava e lançava a mescla de cabelo longa que lhe cobria praticamente um olho – a longa e brilhante franja – para trás e para a frente, enfiou-se apressadamente no uniforme amarelo e preto do Colégio e só entao bufou perante a realidade de, segundo ela própria, “se assemelhar a uma estúpida abelha só porque andava num Colégio de Purezas e Marias da Encarnação”, e com uma preguiça proporcional ao ódio que projectava para quele uniforme de saia amerela curta, de meias pretas com riscas amarelas a formarem losângos e de pólo preto com o emblema escolar directamente sobre o coraçao – quer os alunos gostassem ou não – que escondia uma camisa branca, ela puxou da gavetinha da sua mesinha de cabeceira e, revirando os olhos numa clara e implícita expressão de desprezo, puxou do pequeno crussifixo muito dourado e muito adornado, quase uma cópia exacta do da irmãzinha – mas claro que não o era, afinal, um Alves Antunes que era digno de portar esse nome tinha de ter o seu personalizado crussifixo só para si – e deitou-o pelo pescoço abaixo. E mal o faz, eis que as suas previsões se tornam realidade, e a rotina dos Alves Antunes não é mito, mas sim a mais pura das consequências de quem pouco faz e muito ganha: a dona Josefa bate à sua porta, exactamente vinte e três minutos depois, e grita-lhe “Menina Leonor, venha tomar o pequeno-almoço que os seus pais já se encontram na sala de refeições.”
E, abrindo a porta quando a pobre já lhe virava as costas, fazendo a mulher soltar um pulo, levar as mãos ao peito e clamar por nossa Senhora muito baixinho, ela sorri e diz “Obrigada, Zé” e assim deixa claro o tipo de relação que a Menina Leonor Alves Antunes, filha de Luísa Isabel de Castro Laurinda Sousa Rodrigues e de João Dinis da Cunha dos Alves Antunes, quando eis que a moça lhe mete o braço direito sobre os ombros e assim descem as escadas, e mal atingem o chão homogéneo daquele mármore claro, digno de quem foi importado talvez de Goa, se não de Damão, a moçalhe larga os ombros e segue para a sala de refeições onde, assim que atravessa a porta, lhe atira a mãezinha, sempre sem levantar os olhos do pãozinho integral que vai barrando com creme vegetal à base de soja com a faquinha de prata do serviço que recebera como prenda de casamento dos van Dousen, lhe diz: – Bom dia, Nonô. Deus nos ajude, que esteve uma tempestade de aterrorizar até os anjos hoje.
E sorrindo com desdém, também ela sem levantar os olhos do seu próprio pãozinho – integral ou não, não o sabia: – Eu certamente que não o poderei dizer, mamã. Não ouvi nada. Dormi que nem um anjinho no céu.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Capítulo I - A Manhã das Trevas

O trovão ecoou por todos os aposentos da mansão. Há já muito tempo que a propriedade dos Alves Antunes não acordava com tamanha tempestade. O vento e a chuva faziam as janelas tremer nos seus caixilhos de uma forma bruta e intensa. Nos estábulos, os cavalos relinchavam horrivelmente, demonstrando o seu pavor. À entrada da mansão, o chão havia sido coberto pelos cacos dos encantadores dálmatas de loiça que Madame Antunes havia comprado numa loja de decoração em Paços de Ferreira. Parecia o inferno.
Rosélia acordou sobressaltada com um relâmpago que não devia ter caído muito longe da sua janela. De imediato, salta da sua cama e coloca-se de joelhos em frente ao crucifixo em ouro de 24 quilates que sua tia, a Soror do Convento de Campo Maior, lhe havia trazido do Vaticano e que tinha sido benzida pelo Papa. Fez oito orações a Santa Bárbara, quatro à Nossa Senhora de Fátima e, por força do hábito, rezou duas Avé Marias e um Pai Nosso. Levantou-se, ainda assustada, e foi-se ver ao espelho. Como se encontrava bonita. Seus cabelos loiros caíam em cachos sobre os seus ombros desnudados. Na sua face, de tez perfeita e marmórea, encontravam-se os mais lindos olhos, de um verde profundo, que todo o Portugal havia visto. Mas o seu corpo, esse, era a mais bela jóia do tesouro que era Rosélia. De uma perfeição tal, que apenas poderia ser comparada ao corpo de uma estátua de Bernini e mesmo essa sairia a perder. Todo ele era uma formosura. As suas pernas eram elegantes e bem torneadas, devido à equitação que praticava; a sua cintura era de uma finura espantosa e por entre a camisa de noite da Hello Kitty, adivinhavam-se as curvas provocadoras de uma bela jovem de dezoito anos, que culminavam nos mais maravilhosos seios deste mundo, seios esses que muitas das colegas de Rosélia, verdes de inveja, juravam a pés juntos que eram de silicone e tinham sido feitos numa clínica em Badajoz. Em suma, Rosélia de Castro Laurinda dos Alves Antunes era uma Vénus.
Após namorar o espelho por uns bons vinte minutos, Rosélia dirigiu-se ao seu quarto de banho, afim de se deleitar num prolongado banho de imersão. Sentia-se suja. Durante a noite, tivera mais um dos seus sonhos pecaminosos que ultimamente lhe pareciam atormentar o sono. Sentia-se envergonhada só de pensar neles e nunca por nunca os contaria a ninguém. “O que me deu para sonhar com estas… coisas?”, perguntava-se ela amedrontada consigo própria. De súbito, desfez-se em lágrimas. Imaginou por momentos a reacção de seus pais se estes porventura descobrissem que a sua filha, que havia sido educada no mais puro dos ambientes católicos e que frequentava o Colégio das Salesianas de Santa Maria Descalça, de noite sonhava que era possuída por camionistas e que, pior, após o coito comia tremoços e bebia cerveja. Sua mãe iria parar a um hospital em coma profundo e seu pai daria um tiro na cabeça. Como é que uma menina, que na sua Primeira Comunhão havia se posto aos pés do Senhor e lhe havia jurado que manteria a sua pureza até ao dia do seu casamento, tinha aqueles sonhos repletos de luxúria e de, por mais que lhe custasse admitir, prazer? Fixou-se então nesta última sensação que lhe aflorou no pensamento. Prazer. Como é que ela sabia o que era o prazer da carne se nunca, pelo menos acordada, o tinha experimentado? Já tinha ouvido histórias de colegas que tinham quebrado os seus votos e se tinham entregue aos namorados. Estas contavam como tinham sentido um prazer inexplicável. “Ouça Rosélia, você não ‘tá bem a ver! É que eu senti um calor pelas pernas acima que… Jesus! Parecia que tinha chegado ao Céu mas que ao mesmo ‘tava a arder no fundo dos infernos! Deus tende piedade de mim!”, descreviam elas entre o envergonhado e o orgulhoso. “Foram possuídas por Lúcifer, coitadas…” pensava Rosélia delas sem nunca imaginar que neste momento se sentiria assim. Tentou afastar estes pensamentos e mergulhou o seu corpo na água quente e perfumada. Lá fora, a tempestade continuava e parecia não dar sinais de que fosse parar. Não conteve um sorriso triste ao aperceber-se que o estado meteorológico reflectia o seu estado de espírito.
Já lavada mas ainda um pouco tensa, Rosélia pega na sua toalha e começa a esfregar-se com brusquidão na esperança de livrar-se do pecado em que estava possuída. È então que algo de terrível acontece: ao limpar as suas partes pudicas dá um esticão com a toalha tão forte, que vê-se invadida por uma intensa onda de calor, seguida de uma tontura que faz com que perca as suas forças e caia de joelhos nos azulejos cor-de-rosa bebé, comprados na Moviflor por Madame Antunes. Já no chão, solta um gemido tão alto que chega a sobrepor o som dos trovões que ribombam no exterior. Acabara de ter um orgasmo.